Friday, December 29, 2023

VÉNUS DE WILLENDORF

O arquétipo da mãe

 



 

Que mistérios encerra a pequena estatueta, de calcário extraído de Saga de Ala (Norte de Itália), de 11,1 cm, coberta de ocre vermelho e representando uma mulher? Estatueta que foi encontrada num sítio arqueológico do Paleolítico, próximo de Willendorf (Áustria).

 

Mistérios com cerca de 30.000 anos, perdidos na antiguidade da nossa existência ou guardados no inconsciente da espécie?

 

Representará os predicados de beleza da época? Com os atributos sexuais secundários exagerados, objectificando uma fêmea sexualmente atrativa?

 

Temos de viajar até ao paleolítico para rebuscar elementos de interpretação relevantes. O Homo Sapiens terá cerca de 200.000 anos, cobrindo o Paleolítico Médio (300.000 a 30.000 anos AC) e o Paleolítico Superior (30.000 a 10.000 anos AC). Quando a Vénus foi esculpida, o Homo Sapiens Sapiens já era a única espécie de hominídeos sobrevivente, em tudo idêntica ao homem actual — Cro-Magnon.

 

Vivíamos em cavernas, usávamos o fogo, produzíamos armas de caça e artefactos decorativos, enterrávamos os mortos e sobrevivíamos da caça e da recolecção.

 

Qual era a esperança de vida nesse recuado período? A esperança média de vida era cerca de 25 anos. A média esconde uma mortalidade infantil muito elevada e o facto de alguns indivíduos chegarem a “velhos”. Contudo, percebe-se a necessidade da reprodução se iniciar cedo, usualmente após a menarca (entre os 12 e os 16 anos).

 

A mulher sexualmente atrativa, há 30.000 anos, era (forçosamente) uma jovem com características ainda adolescentes. Não era a Vénus de Willendorf.

 

A estatueta representa uma mulher que já teve filhos e que sobreviveu mais do que a média, representa uma MATRIARCA.

 

A matriarca é a mãe de família, a mulher que deixou descendência e que assegura a sobrevivência da espécie. É natural que seja idolatrada porque o desígnio divino ‹‹Crescei e multiplicai-vos›› depende dela. Sem matriarcas não há futuro!

 

O culto primitivo da Vénus de Willendorf parece-me equivalente ao Marianismo da modernidade, com forte presença no países católicos do Sul da Europa.

 

Tal como a Vénus de Willendorf não tem rosto, Maria também é representada com características indistintas e dessexualizadas. O que evoca não está radicado no tempo, é intemporal.

 

A figura da Vénus de Willendorf não está perdida no tempo, reside no nosso inconsciente coletivo, na matriz cultural, e na mente de cada Homo Sapiens. 

 

Não é um símbolo sexual. É a MÃE!

ALTAMIRA

 

Um chalé na Cantábria



A província da Cantábria é uma das zonas mais privilegiadas da Península Ibéria, um verdadeiro jardim entre a Baía da Biscaia e a Cordilheira Cantábrica. A faixa costeira (chamada Marina), com cerca de 10 km de largura, tem um clima ameno, suavizado pela corrente do Golfo, dotada de uma flora viçosa (Espanha Verde) e de uma fauna exuberante.

 

No Paleolítico Médio e Superior, em plena Idade do Gelo (110.000 a 10.000 AC), a Marina constituía um refúgio seguro, com recursos abundantes para as populações de caçadores recolectores.

 

A fauna da época era constituída por cavalos, bisontes, auroques (touros selvagens já extintos), veados e javalis.

 

A bacia hidrográfica, com os afluentes do Ebro e do Douro, também contribuía para a abundância que descrevi.

 

Sempre que passei na Cantábria fiquei seduzido pela paisagem magnifica, pela profusão de verde e pela beleza das praias: pequenos espaços que o mar roubou à região, certamente enamorado pela formosura da costa. Muitas vezes pensei como seria agradável ter um chalé nesta aprazível localização.

 

O mesmo teriam pensado os nossos antepassados que aqui procuraram refúgio há milhares de anos atrás — entre 30.000 e 15.000 anos (Paleolítico Médio e Superior). Procuraram e encontraram.

 

As Cavernas de Altamira são muito mais do que um chalé, com um comprimento total de 300 m, distribuídos por múltiplos compartimentos, com destaque para o salão de entrada, com luz natural e para o salão dos policromos, onde se encontram as famosas pinturas do teto.

 

Esta coleção de pinturas rupestres é, sem dúvida, uma obra incontornável do espírito humano. Eterna porque continua moderna, após 15.000 anos. Mais moderna até do que os murais que nos chegam do Egipto e de Pompeia, na minha humilde opinião.

 

Tanto engenho, energia e tempo investido nestas pinturas suscitam uma pergunta: porquê e para quê?

 

Imagino-me sentado no salão dos policromos, reunido com outros autóctones, talvez à luz tremeluzente de uma pequena fogueira. As imagem animadas pelo piscar da luminosidade, o som do galopar das cavalgaduras no exterior e as descrições impetuosas de caçadas e sinto-me arrastado pelo fervor do momento.

 

Mal posso esperar pela madrugada para sair com o grupo e enfrentar as feras. Os auroques chegam a ter 2 metros de altura e 2 toneladas de peso, com cornos maciços e fatais. Os bisontes ainda são maiores.

 

Sinto o coração acelerado e a minha mente a focar-se na estratégia da caça. Acometemos em grupo, como as alcateias de lobos, isolamos as presas e atacamos de forma implacável. Uma besta destas pode alimentar-nos durante vários dias.

 

Os pintores não saem da caverna, ficam a caprichar no seu ofício e nós repartimos a caça com eles. A presença destas pinturas é um bom augúrio do sucesso das caçadas.

 

As pinturas rupestres de Altamira invocam abundância e comunicam uma mensagem que nos impele à caça. Quase como os painéis de publicidade, os chamados “outdoors”. Procuram chamar a atenção e desencadear uma compra.

 

Pensar que estas pinturas são “arte pela arte” (conceito definido por Benjamim Constant), no sentido de prazer estético desinteressado (Kant), mostra como nos afastamos da nossa natureza e até da própria natureza.

 

Altamira tem um museu que reproduz a Caverna de Altamira e que recomendo visitar. A beleza e a “modernidade” das pinturas toca-nos muito, especialmente se pensarmos que somos descendentes destes antepassados que andaram pela Cantábria há mais de 50 gerações.